31/08/2021 às 13h00min - Atualizada em 31/08/2021 às 13h00min

Crescem mortes violentas sem causa e pesquisadores veem risco de subnotificação de homicídios

Para cada mulher vítima de homicídio em 2019, havia outra que teve o óbito registrado como morte violenta por causa indeterminada (MVCI), de acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. São casos cujas mortes foram causadas por fatores externos, mas em que não foi possível estabelecer a causa básica ou a motivação que gerou o óbito, se resultante de uma lesão autoprovocada (suicídio), um acidente (inclusive de trânsito) ou uma agressão causada por terceiros ou por intervenção legal (homicídios).

Esse é o resultado extremo de um problema mais abrangente detectado pelo Atlas da Violência 2021, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN).

Em 2019, foram computados 16.648 óbitos como morte violenta por causa indeterminada, um aumento de 35% em relação a 2018 e de quase 70% ante 2017. Considerando o percentual de MVCIs em relação ao total de mortes violentas, o índice passou de 6,2% em 2017 para 8,2% em 2018 e atingiu 11,7% em 2019.

"Um crescimento brusco das mortes por causa indeterminada decorrentes de lesão provocada por violência é bastante preocupante e indica perda de acurácia das informações do sistema de saúde. Este fato, além de revelar a piora na qualidade dos dados sobre mortes violentas no país, permite também levar a análises distorcidas, na medida que pode indicar subnotificação de homicídios", aponta o relatório.

Segundo o Atlas, homicídios podem ter sido ocultados pela deterioração da qualidade dos dados do SIM. Em um trabalho anterior, Daniel Cerqueira, diretor-presidente do IJSN e um dos coordenadores do Atlas, estimou que cerca de 74% das MVCIs correspondem, na verdade, a homicídios não classificados como tais. Tomando isso como premissa, caso a proporção de MVCI em relação ao total de mortes violentas fosse a mesma observada em 2017, haveria cerca de 5.338 homicídios a mais registrados em 2019, estima o relatório.

O Atlas destaca que o aumento da taxa de MVCI coincide com um período em que a taxa de homicídios no país diminuiu. Em 2019, houve 45.503 homicídios no Brasil, de acordo com o SIM, o que corresponde a uma taxa de 21,7 mortes por 100 mil habitantes. O número é inferior ao encontrado para todos os anos desde 1995, mas o documento pondera que a queda de 22,1% nos homicídios entre 2018 e 2019 "deve ser vista com grande cautela em função da deterioração na qualidade dos registros oficiais".

Os dados publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, por exemplo, que tem como fonte os boletins de ocorrência produzidos pelas Polícias Civis, indicam 47.742 mortes violentas intencionais em 2019, número 5% superior ao registrado pelo sistema do Ministério da Saúde. Foi a primeira vez que o número do anuário ficou acima do coletado no SIM.

O Atlas afirma que, em relação aos homicídios, o SIM é historicamente a principal fonte de dados, por ter abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica. No entanto, diz o relatório, o recente aumento das MVCIs reduz o conhecimento sobre a realidade atual.

"Pela dimensão desse crescimento, não está invalidada, por exemplo, a conclusão de que houve uma queda da taxa de homicídios no Brasil em 2019, mas reduz-se a precisão da magnitude dessa diminuição. Além disso, os homicídios não computados também podem afetar os resultados de outras variáveis, reduzindo o nível de confiança das análises sobre juventude, homens e mulheres, negros e não negros, pessoas indígenas, pessoas com deficiência e homicídios por armas de fogo", afirma o relatório.

O número de mortes violentas por causas indeterminadas subiu 57,4%, ante 2018, entre os jovens, com 3.991 registros em 2019. A taxa de MVCI por homicídios totais passou de 8,2 para 18,2. Entre os negros, o crescimento foi de 47,3%, com 10.045 registros representando 29% dos homicídios, contra 15,5% em 2018.

O documento ressalta que a questão dos altos índices de MVCI afeta sobremaneira a qualidade dos dados em alguns Estados, principalmente Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e Bahia. No Rio de Janeiro, por exemplo, onde cerca de 34% do total de mortes violentas foram classificadas como MVCI, a taxa de homicídios caiu 45,3% em 2019, ao passo que a taxa de MVCI aumentou 237% no mesmo ano. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, as taxas de MVCI por 100 mil habitantes (9 e 28,3 respectivamente) superam as de homicídios (7,3 e 20,3) em 23% e 34,4%, pela ordem.

Ponderadas questões metodológicas, o documento observa diminuição das taxas de homicídio em todas as regiões do país em 2019, com maior intensidade no Nordeste. Todas as unidades federativas apresentaram queda, com exceção do Amazonas que, entre 2018 e 2019, registrou aumento de 1,6%.

Segundo edições anteriores do Atlas, três fatores têm ajudado a impulsionar a diminuição dos homicídios na década: a mudança do regime demográfico rumo ao envelhecimento da população e à diminuição do número de jovens; a implementação de ações e programas qualificados de segurança pública em alguns Estados e municípios brasileiros; e o Estatuto do Desarmamento.

"Além do impacto desses três fatores para diminuir a taxa de homicídios em vários Estados da Federação, ao longo da década houve um armistício entre as grandes facções de narcotráfico, em 2018 e 2019, após a guerra que eclodiu em meados de 2016 e seguiu até o final de 2017", lembra o relatório, destacando que o "armistício" teve consequências substantivas nas regiões Norte e Nordeste. Todos esses fatores contribuíram "para a reversão da trajetória de crescimento dos homicídios agregados no Brasil a partir de 2018".

Olhando à frente, a equipe avalia que a política permissiva em relação às armas de fogo patrocinada pelo governo federal a partir de 2019 pode favorecer a ocorrência de crimes interpessoais e passionais, além de facilitar o acesso das armas a criminosos contumazes (traficantes, assaltantes, milicianos, entre outros), "tendo em vista a comprovada ligação entre os mercados legal e ilegal de armas". "Trata-se de uma política cujos efeitos perdurarão por décadas, período em que essas armas permanecerão em condições de uso e continuarão em circulação", diz o relatório.

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