O recente avanço inflacionário em agosto diminuiu poder de compra das famílias, que agora recorrem cada vez mais ao crédito para fechar o orçamento do mês. Na prática, isso tem levado a patamares recordes de endividamento - fenômeno pode continuar - alertou a economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Izis Ferreira.
Ela fez a observação ao comentar parcela recorde de 72,9% de famílias que, em agosto, se declararam endividadas na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da CNC, cuja série histórica começa em janeiro de 2010. O resultado foi recorde pelo segundo mês consecutivo, sobre 71,4% registrados em julho.
"O endividamento vem batendo recorde após recorde desde abril. A curva de endividamento tem acirrado inclinação. Isso mostra que as famílias estão com dificuldade de compor orçamento, de a renda chegar até o fim do mês. E isso tem levado ao maior endividamento" explicou a economista. Na prática, as famílias têm acessado empréstimos para pagar as contas, explicou.
Esse não foi o único recorde na pesquisa, acrescentou a economista. Entre os endividados, 83,6% citaram em agosto o cartão de crédito como modalidade de dívida. Além de superior a julho (82,7%) também foi proporção recorde para essa resposta, na Peic, informou ela. No caso das famílias com ganhos mensais inferiores a dez salários mínimos, a parcela é ainda maior, de 84,3%, também recorde para essa faixa de renda, comentou a técnica.
No caso dos mais pobres, a especialista notou que as famílias de menor renda são as que mais sofrem com a inflação em alta, e contam com poucas opções para pagar contas. Por isso, recorrem ao cartão de crédito. "A inflação piorou muito [em agosto]" comentou, observando que as altas de preço vão desde energia a transportes e alimentos. "Esse choque inflacionário, que parecia ser mais rápido, agora se mostra mais persistente e difundido", notou.
Esse cenário ocorre em contexto onde o mercado de trabalho não apresentou, até o momento, sinais de recuperação robusta, pontuou Iziz. Como o ritmo de abertura de vagas é menor do que a demanda por trabalho, o desemprego cresce, e não há muitas fontes de renda originadas do trabalho, que pudessem fazer com que as famílias recorressem tanto ao crédito para fechar orçamento, explicou ela. Ao mesmo tempo, as vagas que surgem não têm impacto expressivo na melhora da renda do trabalhador, acrescentou. "Desde o início de 2020, a massa de rendimento vem caindo no Brasil. O mercado de trabalho ainda está fragilizado" avaliou.
Para a especialista, o cenário atual de inflação alta, e sem retomada expressiva no emprego, deve estimular novas altas de endividamento entre as famílias. Ao mesmo tempo, o cenário da pandemia por covid-19, com novas variantes mais transmissíveis como a delta, confere incertezas em relação a novas medidas de restrição de circulação social - que podem afetar atividades intensivas em emprego, como comércio e serviços. Por isso, ela não descarta que a Peic continue a mostrar alta na parcela de famílias endividadas.
"O crescimento dos juros pode refrear endividamento" disse, citando a recente trajetória de alta na taxa básica de juros (selic), pelo Banco Central (BC) que, na prática, deixa o crédito mais caro e, por consequência, menos atrativo. "Mas o fato é que enquanto a gente não tiver mercado de trabalho se recuperando de forma mais consistente e inflação ceder, dificilmente teremos queda nessa proporção de famílias endividadas" afirmou ela. "Não enxergamos isso [recuo na parcela] no curto prazo" completou.
Entretanto, a CNC não registrou piora nos indicadores de inadimplência. Entre os endividados, 25,6% declararam contas em atraso, proporção igual a de julho e menor do que a de agosto de 2020 (26,7%). Os que informaram não ter condição de pagar, por sua vez, levaram a uma parcela de 10,7% no total de endividados com débitos em atraso na Peic de agosto, inferior a de julho (10,9%) e de agosto de 2020 (12,1%).
Izis comentou que os conceitos de endividamento e inadimplência são distintos. Ela pontuou que, ainda que o aumento das dívidas seja termômetro importante sobre a saúde financeira dos brasileiros, há que se avaliar a capacidade das famílias em cumprir com os acordos. E, até então, a inadimplência mantém estabilidade, no entendimento da pesquisadora.
Em nota sobre a pesquisa, o presidente da CNC, José Roberto Tadros, comentou que o crédito tem ajudado muita gente na recomposição da renda.
“Na pandemia, muitos têm recorrido à informalidade e investido em pequenas atividades para garantir seu sustento, por isso o acesso ao crédito é tão importante. Mas há uma necessidade grande de planejamento do orçamento familiar para que esse alívio não vire um problema ainda maior do que o que se tinha inicialmente, uma bola de neve”, alertou ele.
A CNC informou ainda, no comunicado de divulgação da Peic, recorte especial de endividamento por regiões, já antecipado ao Valor no início do mês. A entidade reiterou que o endividamento, no país, acontece em patamares diversos, nas diferentes regiões do Brasil, mostrando características peculiares a cada Estado.
O Acre, por exemplo, apresentou a maior proporção de famílias endividadas (93,7%) em agosto, ao passo que o rendimento mensal per capita dos acreanos é o 10º menor do País, segundo dados de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No outro extremo, Santa Catarina detém a menor proporção de famílias com dívidas em agosto (50%).